A Melhor Idade

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As dificuldades da vida fizeram com que eu passasse boa parte da minha infância longe da minha mãe, pois sendo solteira, sem casa, sem apoio familiar, ela teve que se multiplicar para me criar.  Por causa disso, acabei morando em vários lugares, com os mais variados tipos de pessoas, o que balisou a minha insegurança e me tornou uma pessoa sedenta de afeto. Tinha na minha mãe a minha salvadora, a heroína que iria me resgatar dos maus tratos e do pouco caso das pessoas com quem morei, e que iria me levar para uma casa e um lar, onde eu receberia carinhos, beijos e muito dengo.

Mas no dia em que finalmente nos juntamos, as coisas não foram bem assim.  Com seu temperamento forte, nunca nos entendemos direito.  A convivência, desde então, foi de muita tensão, muito embate e discussões.  Ela, querendo impor sua vontade e sua opinião e eu, tentando me impor, apesar das minha fraca estrutura emocional.  Nada de beijos, dengos e carinhos mas sim, a subjetiva cobrança de  que eu "tinha que dar certo" e ser exemplar.  Cresci, então, com a ideia de que o dever vem sempre e muito acima e além de qualquer outra coisa, ideia essa que ainda permanece até hoje.

Minha mãe sempre foi uma guerreira.  Muito ativa e altiva, ao mesmo tempo em que sempre se preocupou com a estética, nunca se furtou em "brincar com as panelas", já que é uma exímia cozinheira.  Da época dos meus estudos, não me lembro de nehuma série em que tenha me faltado 1 lápis sequer, e olha que a lista de material e de livros sempre foi grande.  E cara.  Ela sempre se esmerou em suprir essas minhas necessidades.

Morando numa favela, numa época em que o clamor do consumismo não era tão gritante como hoje, não tínhamos muitos bens materiais, porém, nosso barraco de madeira se diferenciava dos demais, pois que sempre arrumado, limpo e bem cuidado.  Com o tempo, a deterioração foi se fazendo mais forte, e já adolescente, tive que trabalhar para construir um cômodo de alvenaria, pois o tal barraco insistia em ameaçar de cair sobre as nossas cabeças.  Foram tempos duros e sombrios, em que mais apliquei o princípio do dever antes de tudo, acima e além.  Com muita dificuldade consegui me formar não uma, mas duas vezes, já que uma segunda oportunidade bateu à minha porta, o que fez todo o diferencial na minha vida profissional, apesar de não ter uma pós-graduação.

Cresci ouvindo de minha mãe que seu desejo sempre foi o de ter gerado um menino e em muitas ocasiões, quando criança, ela me chamava de "meu filho".  Na verdade, isso nunca me incomodou, porque o que eu mais queria era mesmo sua atenção e seus cuidados.  Hoje, com um neto menino, creio que seu sonho tenha sido realizado, mesmo que parcialmente.

Minha mãe é uma avó clássica, daquelas que querem dar e fazer tudo o que o neto pede e tendo apenas um único neto, então toda a sua atenção se volta para ele.  Não se furta a atender aos apelos manhosos de Davi, e se não sou eu a bruxa má da história, a situação seria bem pior.  Ele, por sua parte, ainda não tem despertado o lado interesseiro que a ocasião lhe proporciona, o que lhe daria poder para chantagens emocionais, porém, quando eu ou o pai lhes dão um passa fora, é para os braços da avó que ele corre.

Passei boa parte da minha vida cuidando da minha mãe.  Me lembro que em torno dos meus 10 anos de idade ela foi operada das varizes.  Naqueles tempos bicudos e com todas as dificuldades em que vivíamos, tive que dar-lhe banhos e fazer os curativos, além de acompanhá-la às consultas.  Desde então, tenho sido uma espécie de para raios dela e há muito deixei de ser filha para ser sua responsável, apesar de seu contragosto.

Nos últimos tempos, com as restrições que a idade impõe a todos, tenho que me adaptar a conviver com uma nova realidade: cuidar de uma idosa.  Depois de algumas outras cirurgias e vários sustos que culminaram no último princípio de isquemia, minha mãe se tornou ainda mais dependente de mim. Contudo, sem abrir mão de sua altivez, ainda nos desentedemos várias vezes.  Mesmo assim, tenho tentado me adaptar aos seus limites, às suas falhas de memória, às suas limitações físicas, à sua idade. 

Quando olho para minha mãe, vejo cada vez mais fortes as marcas do tempo, das dificuldades  vividas,  das suas frustrações.  Cabelos fracos e ralos, rugas e flacidez,  movimentos mais restritos, doenças e limitações normais que a velhice traz para a maioria das pessoas normais. Imagino que para ela não esteja sendo fácil essa sua nova realidade, da mesma forma que para mim, me adaptar às suas limitações também tem sido um desafio.

Com a expectativa de vida cada vez maior, viver a velhice nos dias de hoje tem sido muito mais saudável, com muitas atividades físicas e lúdicas, com danças, teatros, além das vantagens que o Estatuto do Idoso trouxe aos nossos velhos, onde se prioriza o atendimento aos que o politicamente correto chama, h-i-p-o-c-r-i-t-a-m-e-n-t-e, de Melhor Idade. Digo hipocritamente porque não podemos ignorar que a velhice traz, sim, limitações, desconfortos e, em muitos casos, infelizmente, maus tratos e humilhações.  Acredito sim, que a maturidade e as experiências da vida podem nos fazer pessoas melhores - se quisermos, claro -, porém, fisicamente, a idade traz restrições e doenças e impõe limites dos mais variados.  Portanto, dizer que alguém está vivendo a "melhor idade" me soa muito falso, até porque ninguém quer ficar velho, essa é a verdade.

Temos que cuidar dos nossos velhos, não importa o tipo de relacionamento que tivemos com eles no passado.  Algumas pessoas não mudam jamais e quanto mais velhas ficam, mais seu temperamento se acentua.  O que nos resta, enquanto ainda somos menos velhos, é isso: cuidar, tratar, ter paciência e principalmente respeitar, deixar de lado as implicâncias, relevar algumas coisas, ignorar outras, afinal, essa realidade também chegará nas nossas vidas um dia e o que esperamos, de fato, é que nossos filhos façam conosco o que fazemos com nossos idosos. 

Mas é difícil....

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