Casa arrumada ou com vida?



Eu sempre tive um certo"tique nervoso" com arrumação.  Não gosto de coisas fora do lugar, o que também não faz com que eu seja aquele tipo de pessoa que vai etiquetando e classificando tudo pela frente.  Não, não tenho esse nível de disciplina, e às vezes, quando olho para as minhas gavetas de roupas, concluo que, de organizada eu não tenho muita coisa.  Mas eu não gosto de bagunça, gosto das coisas nos seus devidos lugares, mesmo que provisoriamente (!).

Cresci com o hábito, por exemplo, de arrumar o lugar onde durmo.  Como dormi muitos anos em sofá, então, eu não tinha lá muita escolha: ou arrumava, ou arrumava, já que sofá não é lugar de dormir e, sim, de se sentar, não só você, mas quem vai na sua casa.  Toalha de banho secando dentro do banheiro apenas não existe para mim, ela tem que ser estendida no secador, da mesma forma que peça íntima, que é lavada durante o banho, hábito adquirido desde muitíssimo cedo e que até o pai do Davi adotou, acredita?  E aquela cena de pia de cozinha com louça até o teto de um dia para o outro simplesmente não existe, pois nem que eu vá dormir com o galo cantando a pia fica cheia.  Panelas no fogão ou dentro da geladeira? Não, também nem pensar.  E o fogão?  Limpo. Sem mais.

Eu sofro um bocado com isso.  Houve épocas em que dispensava um sábado de sol inteirinho limpando a casa.  Sem tempo durante a semana, só me restava esse dia para atualizar a limpeza de tudo, dos móveis até os vidros.  Essa rotina durou praticamente todos os anos da minha adolescência, juventude e boa parte da vida adulta, muito porque eu realmente não consigo viver no meio da sujeira, mas também porque era uma espécie de fuga da vida.   A casa ficava brilhando, eu ficava exausta e tudo ficava sem graça.

Mas aí o Davi chegou - e eu acho que essa frase não é novidade por aqui -, e bagunçou tudo, literalmente.  

Ter que se dedicar à limpeza de uma casa e, ao mesmo tempo, à uma criança, numa rotina de trabalhar o dia inteiro fora de casa, a semana toda, não é das mais fáceis. E ainda tem o marido e eu mesma, afinal, eu que faço minhas unhas e meu cabelo.  Empregada doméstica?  Nem no meio delírio mais profundo. Tenho no máximo, uma senhora que me ajuda na passagem da roupa, a cada 15 dias, o que é, para mim, o meu maior luxo.  Então, o que me resta sou eu mesma e o marido que, tenho que reconhecer, é um "baita" marido, pois me ajuda em várias tarefas da casa, como limpar os banheiros, coisa que eu apenas detesto.

Aos poucos, porém, tenho aprendido não a jogar o lixo para debaixo do tapete, mas a dar menos importância a uma casa limpa e arrumadinha.  A cada dia que passa, meu filho me cobra mais atenção e muitas vezes eu me deparo com o fim de um sábado com os panos e vassoura nas mãos e Davi lá num canto, brincando sozinho ou vendo TV.  Não, isso não é justo, pois a infância dele é uma só, e eu não tenho o direito de privá-lo assim da minha presença.

Hoje, minha casa tem vida, tem uma criança que puxou a "baguncice" do pai, que espalha brinquedos por todos os lados.  Claro que eu o oriento a colher seus pertences e a guardá-los, afinal, esse é o meu papel e ele não vai ter mãe para ajudá-lo quando adulto.  Mas quando eu olho ao meu redor e vejo um carrinho embaixo da mesa ou um boneco num canto da sala eu já não me aborreço tanto, porque eu sei que daqui a alguns anos eles não estarão mais nesses lugares, que talvez estarão limpíssimos.  

Eu passo o dedo sobre algum móvel e vem aquele montinho de poeira e, aí, eu assopro e ela se dissolve no ar para voltar ao seu lugar de origem. É difícil para mim, porque a reação imediata é pegar um pano e começar a limpar até que t.u.d.o. esteja brilhando, e até que eu fique exausta, e até que um dia inteirinho de sol se acabe, enquanto o Davi fica num canto sozinho.  Não, não dá, pelo menos enquanto eu ainda trabalho em horário integral.  E aí, eu tenho que rever, quase sempre, as minhas prioridades, e Davi é, sempre, prioridade.  Então, às vezes o negócio é ignorar, fazer de conta que não estou vendo a poeirinha e tocar o dia, ensolarado ou não.

Claro que as panelas não irão dormir no fogão ou na geladeira; as toalhas continuarão secando fora do banheiro e as peças íntimas, a serem lavadas durante o banho, afinal, essas coisas acabam se tornando uma rotina da casa, além de serem uma ótima iniciativa higiênica.

O texto do Drummond, abaixo, é uma daquelas belas aulas de vida, e é o que eu tento aplicar enquanto ainda tenho oportunidade.

E o resto?  Ah, a gente empurra para debaixo do tapete rsrsrs...

Casa arrumada é assim:
Um lugar organizado, limpo, com espaço livre pra circulação e uma boa
entrada de luz.

Mas casa, pra mim, tem que ser casa e não um centro cirúrgico, um
cenário de novela.

Tem gente que gasta muito tempo limpando, esterilizando, ajeitando os
móveis, afofando as almofadas...

Não, eu prefiro viver numa casa onde eu bato o olho e percebo logo:
Aqui tem vida...

Casa com vida, pra mim, é aquela em que os livros saem das prateleiras
e os enfeites brincam de trocar de lugar.

Casa com vida tem fogão gasto pelo uso, pelo abuso das refeições
fartas, que chamam todo mundo pra mesa da cozinha.

Sofá sem mancha?

Tapete sem fio puxado?

Mesa sem marca de copo?

Tá na cara que é casa sem festa.

E se o piso não tem arranhão, é porque ali ninguém dança.

Casa com vida, pra mim, tem banheiro com vapor perfumado no meio da tarde.

Tem gaveta de entulho, daquelas que a gente guarda barbante,
passaporte e vela de aniversário, tudo junto...

Casa com vida é aquela em que a gente entra e se sente bem-vinda.
A que está sempre pronta pros amigos, filhos...

Netos, pros vizinhos...

E nos quartos, se possível, tem lençóis revirados por gente que brinca
ou namora a qualquer hora do dia.

Casa com vida é aquela que a gente arruma pra ficar com a cara da gente.
Arrume a sua casa todos os dias...

Mas arrume de um jeito que lhe sobre tempo pra viver nela...

E reconhecer nela o seu lugar.
Casa Arrumada, Carlos Drummond de Andrade (1902-1987)

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